sexta-feira

consigo imaginar-te a conduzir pela marginal, a ti e à velocidade
das árvores e das casas paradas por onde passas. é ilusão minha
ver-te naquela paragem de autocarro, mas hoje juro que te ouvi
a pedir um bilhete e vi a tua cara de desaprovação pelo 1,60€
que terias de pagar quando, que injustiça, era menos de
meio quilómetro e sairias logo dali a 3 minutos. foi confuso
e aconteceu tudo muito rápido como todas as coisas confusas
e imperceptíveis que dizemos ou pensamos
quando temos encontros inesperados.
não deixes de recorrer ao meu corpo mesmo sendo apenas
um corpo que gostas de tocar. dou-te vontade e a avenida
24 de julho está vazia de gente séria e incapaz
de se apaixonar. o nosso tempo é curto e um dia
acabarei por morrer numa rua qualquer cheia
de esperma e de pessoas que me lamentavam
por ser uma mulher triste e vulgar. jamais terei uma data
marcada para casamento, conheço demasiado a força
dos maxilares e isso impede-me de ver o que se passa
à minha volta. reparo nas constelações porque acredito
que há um tempo que desaparece quando lhes entrego
os meus olhos. eles não sabem disso e apressam-se
a experimentar os meus ossos como se fosse um dever
ejacular e achar graça àquele instante. depois de tudo
alguns ainda ajeitam o cabelo e perguntam-me se tenho
onde dormir. talvez exista uma fragilidade no homem
capaz de transformar tudo o que se move a pouca luz ou
talvez seja a pouca luz a causa dessa fragilidade. nesta cidade
quase nunca cai granizo nos telhados e eu gostaria muito
de cantar como a billie holliday, não sei qual a razão,
mas sempre que chega mais um cliente penso nisto.

quinta-feira

parece-nos que há sempre algo que não conseguimos
dizer aos outros. é sempre pouco e repetido
fazer de conta que olhamos e que não há apenas
um silêncio e o deserto a acompanhar o céu onde
criamos coisas lá dentro para depois as fingirmos. entre tanto
e aquilo que não dizemos existem os continentes e os livros de bolso
depois queremos cuspi-los antes de ficarmos cegos
a contornar praças e ouvir os pombos. quase que não existem
fontes, os quiosques não vendem todas as marcas de tabaco e
talvez este seja um grande motivo, e válido, para não querermos
ficar à espera de nos vermos morrer.