sexta-feira

o último estrondo foi o da porta
a bater com força uma vez mais
antes de se fechar completamente. eu ouvi
e não tenho dúvidas que perguntaram as horas
às senhoras da farmácia, eram oito
e vinte e já tinham ali passado outras
pessoas que desciam dos autocarros. ela ia
carregada com os sacos, pelo menos três
e levava a mala e a maldita alça descaída
a prender-lhe o braço direito disseram
as vizinhas: que desgraça a da irene e os bombeiros
que demoraram tanto tempo a retirar o corpo
do prédio e a esfregar o sangue das escadas.

segunda-feira

lote: 108 3.º direito

tocavas três vezes lá em baixo e dizias para
eu descer e que não encostasse as mãos
à parede do poço do elevador. eu ainda gritava
da janela: está bem, mas bem que podias ser tu
a subir. eu abraçava-te, pensava que ias
morrer na manhã seguinte, no sábado ou
numa outra noite qualquer quando partisses
em direcção a outro caminho, talvez lisboa. eu não sabia
como contar-te que quando tocavas três vezes,
a possibilidade de ser maior a distância
entre nós, o teu quintal e as coisas mortas
que lá existiam, tudo isso diminuía. às vezes,
eu ouvia a dona guida a queixar-se: um dia, menina,
ainda cai por essa escada. a menina
era eu e um pouco de terra presa à sola
das botas, eu, e os meus braços de oito anos
a sair com pressa do prédio.

terça-feira

a verdade é que eu não sei
amar-te de outra maneira:
há estrelas que cobrem o céu
todo. por todo o lado só
vejo estrelas.