quarta-feira

o nuno, a raquel, a joana e eu



o nuno tocava baixo e morava na rua das acácias
com os pais, num prédio de quatro andares
sem elevador. o pai temia que a morte se aproximasse
em breve e discutia lembranças com o jacinto do rés do chão
para que não lhe parassem os olhos de assegurar
os tempos. a mãe engomava roupa para fora
cosia as costuras aos vestidos de seda, reerguia graças
rires de esperança às raparigas. das três do costume
a raquel ardia-se inteira ao vê-lo chegar. tinha a mania
de acrescentar clareza aos lugares ao prever um caminho
dentro das coisas. o nuno conhecia pedaços de pautas internas
unidas por elásticos, a gaveta da cómoda antiga
com algumas esferográficas ao fundo a carteira em couro
e uma mão de cassetes com algumas, mas poucas gravações
de há treze anos atrás que o levavam a reconstruir
a humanidade. tudo ordenado e sem prantos
que os homens  constroem grades de ferro para se defenderem.
o prédio não era muito alto: subíamos descíamos subíamos e descíamos
com a habilidade de guardar o ar todo nos pulmões
se o nuno não aparecesse. éramos só nós as duas
e o mais provável seria ardermos também,
por dentro e sem promessas 
seria só a combustão o quente e, de vez em quando
o castanho escuro dos olhos do nuno.

sexta-feira

dos dias


sempre soube o vento nos braços da terra,
a estrutura do chão, a raiz unida ao fundo.
por isso a linguagem das águas à superfície da memória,
a estrutura fria, a gravidade dos olhos que guardam
o pouco que me basta. a ilusão
é o consolo do corpo entre a paisagem
é o longe da armadura
a compensação.





domingo

enquanto espero o 159


penso o amor e uma cadeira
a textura fina do pó e um bago de arroz.
penso nas raparigas que vejo chegar
nas cidades todas que trazem dentro delas.
não sei sequer se existo ainda, mas há som
atrás do vidro e há pessoas que se aproximam.
penso o amor e uma cadeira
os aviões que aterram no aeroporto de lisboa.
não fumo há mais de quatro anos, lembrei-me agora e
daquela t-shirt que me emprestavas para dormir, não sei
porquê agora isto e o sabor quente da meia de leite a ferver
o coração a bater pela casa
a ventania e o coração a bater pela casa.

nada disto interessa

não tenho trinta anos e não estudo antropologia. 
os meus pais não são de lisboa. a minha mãe não é médica 
o meu pai não é arquiteto. não tenho irmãos não gosto 
de palavras nem que me vejam nua
a sair do duche. gosto de sexo e da tua boca. 
gosto de sexo e de te ver. gosto que me ajeites a blusa
de quando me apertas nas ancas e me inclinas 
a cabeça para trás com força.terça feira é o dia 
em que recordo um bocadinho o destino.
lembra-me a terça feira cantada pelo sérgio godinho, 
o cheiro que se entranha na roupa 
ao sair da feira da ladra. 

quarta-feira

existe ainda o amor e a água das chuvas


existirá para sempre o amor e a água das chuvas.
contigo nunca esquecerei os pássaros.

sábado

vou pedir-te um beijo e depois começar de novo




      vou pedir-te um beijo e depois começar a ler o livro
      aquele que um dia me emprestaste à pressa 
      à saída do metro de sete rios. sei que sorriste 
      ao colocar as mãos nos bolsos e eu apertei firme a pontinha dos pés e 
      contive o abraço. mas um dia vou pedir-te um abraço e depois um beijo
      como os que vejo nos filmes, como os dos amantes que anoitecem 
      de mãos dadas. vou pedir-te a água dos passeios, pedir-te que fales da paz
      que perdemos ao aproximarmo-nos de tudo o que amamos,
      do que podemos transformar ao darmos as mãos.
      só tenho como anoitecer contigo. não tenho como elevar-me 
      ao cimo do fogo, não tenho como sentar-me à mesa do café 
      e fingir ver-te dançar. às vezes apareces e cantas uma canção 
      eu sento-me nos telhados e começo a contar-te os dedos dos pés. 
      um dia vou pedir-te que cases comigo que não esqueças a casa e o mar
      que me leves no teu colo a andar de bicicleta.

domingo

no cimo daquela árvore





vamos brincar ao jogo das palavras
tu dizes primeiro a palavra vento e eu fecho os olhos.
só depois posso lembrá-lo livre e compor
a sua forma, no teu cabelo.

sexta-feira

num café que não lembro o nome

a névoa nunca é tão doce
como quando te debruças ao vento - disseste um dia.





um pouco antes de subires ao palco, ouviu-se ou 1, 2, 3, 4, 5 e é agora.





















I
se respirares por mim ensino-te a cantar.

II
ensinas-me a íris dos olhos, a pintura do sol?

III
hei-de construir-te uma casa com muitas janelas e o tempo dentro delas.

IV
e se nos esquecermos?

V
desenhamos um coração num pedaço de terra
e nele o mundo?

domingo

por um instante, pensei que lá estivesses

ela escrevia cartas de amor e algumas tinham
o movimento da luz e das datas inteiras. entre elas
as mãos abertas e o antónimo delas mesmas, às vezes
sobre a mesa até pareciam verdadeiras. pensara muito nisto
e no lume quente do inverno a assinalar o ponto
mais seguro na casa. pensara muito nisto e nas pessoas
que se sentam nos passeios e inventam palavras e alugam quartos
na cidade. depois lembrou-se das putas e do sabor
das pastilhas e do algodão doce na boca, da eternidade
do homem e da maravilha de tudo parecer assim
maior quando se termina uma frase com um para
sempre, meu amor. ela pensara muito nisto e
na terra. disse-me uma vez que a terra e o corpo
eram dissolúveis num tempo comum a todos e que era só isso
que importava que não queria explicar-se que era já noite
que tinha ainda que caminhar muito até chegar
ao outro lado da rua.

toalha de mesa


não peço que regresses, que fiques.
sentemo-nos apenas no cimo do que vês.
quero ser apenas a mulher carvão
um peixe carvão, talvez um coração carvão
desenhado a lápis, no teu caderno.


também eu sorria

colocavas os punhos dentro de água e depois o rosto e
sorrias. sabe tão bem a água fresca no rosto e eu lembro-me
(ainda) da luz no pouco espaço da casa e depois de mais tarde repetir
sabe tão bem a água fresca no rosto, tinhas razão e agora vê
a película de água que se estende no espelho.

de chávena na mão, no café de sempre


perguntei-lhe se gostava de amoras
do chão onde se calculam os passos
das palavras demoradas nos passeios do tempo.
perguntei-lhe pela paz
pelo sorriso dos que não dizem.
tivesse ainda tempo e perguntar-lhe ia se ainda namora com o rui
se comprou casa em sete rios, se ainda adormece a ler
se a sua mãe é viva e se recorda o cheiro dos queques da dona rita,
do nome da filha da dona são.
tivesse ainda tempo e perguntar-lhe-ia pela vanda,
se ainda anoitecem pessoas, por aquele bairro.





a água fria muito tempo no corpo

um dia deixarás de ter um coração completo.
as tuas mãos serão perfeitas
na largura dos lagos.
as luzes tornar-se-ão ácidas
diante das casas e da tristeza das mulheres.
será o cheiro da acetona que dilui
a entrar primeiro, depois alguém
a cercar de terra o endereço da idade.
lembrarás a renda na caixa de ferro
o fundo vazio do alguidar
a água fria muito tempo no corpo
o plástico na sentença do fogo.

um dia deixarás de ter um coração completo
e serão os filhos dos outros
a recolher os teus olhos
no escuro da cave.

disseste, em modo de segredo, ao meu ouvido


és o meu pássaro de fogo
sobre a planície em sol poente.