domingo

não sei se haverá uma qualquer substância que diferencie
o sangue de alguém que morre de amor, do sangue de outro
alguém que morre por amor. seriam precisos muitos mortos, muitos
homens a afastar-se da noite e a tentar inventá-la de forma diferente,
a caminho de casa. se assim fosse, daqui a pouco tempo teríamos a luz toda
dentro de uma caixa e os nossos olhos seriam só um líquido destilado dentro de um copo
na extremidade de uma mesa. alguém que me esclareça, que se este for azul
eu não morrerei no dia de hoje, terei ainda tempo para escrever
uma carta a minha mãe. dois minutos chegariam para lhe dizer
que o copo estava a meio e que o ingeri enquanto escolhia a posição
mais confortável no sofá e que iria ali ficar, não para sempre, mas até alguém
se lembrar de tocar à campainha ou simplesmente de mandar três pedrinhas
à janela e constatar que não respondo. depois será rápido até me visitarem
no início de novembro, quando os eléctricos estiverem acumulados de pessoas
e só existirem carteiristas. alguém que me esclareça; que se este líquido for incolor
basta-me morrer a abraçá-lo cá dentro. não vejo nenhum mérito em morrer
de amor e assim de qualquer maneira, mas por amor reinvento alguns gestos e pedaços de história.
nesse dia seremos os dois uma  fracção de um tempo anterior
duas estrelas pontiagudas que se destroçam no céu.

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